terça-feira, 3 de julho de 2012

Conto de Escola [LARP]


Noronha, o professor de física. Meio corcunda, usava um jaleco branco com manchas amareladas, sem camisa por baixo, que de tão puído apareciam os pelos na corcunda. Tinha uma pinta no queixo do tamanho de uma jujuba e um buraco no lugar do pré-molar que dava para encaixar um mentex. Era impossível se concentrar naquela aula. Aquela pinta era o segundo motivo da minha total falta de atenção em classe. Toda vez que ele virava para os alunos, meus olhos eram atraídos involuntariamente, e convergiam para aquela pinta horrorosa.

Na adolescência é assim: tudo que é estranho e chama muita atenção vira gozação e apelido. A Daniela Martins era a Dani Peitão, o Maurício, o Nareba, meu melhor amigo, o Carré, e por aí vai. Ninguém escapava de um apelido ou uma piada. Quer dizer, ninguém mais ou menos. Eu não admitia a ideia de brincarem com ela: o primeiro motivo da minha falta de concentração na aula de física. Maria Clara Carvalho. A menina mais linda da classe, da escola e, para mim, do mundo!

Eu passava os exatos 45 minutos da aula de física olhando para ela. A todo instante, esperava aquele momento em que olhares se cruzam e os sorrisos acontecem. Mas eram raros, raríssimos - tinha mais sucesso com a pinta do Noronha. Clarinha era a visão de um anjo. Pele banca, olhos cor de Jabuticaba, cabelo escuro, na sua maior parte liso, nas pontas fazia algumas ondas. Cheirava a chiclete de tutti-frutti, estava sempre comendo um, e tinha os pés “dez para as duas”, por causa do balé. E o sorriso? Usava aparelho. Cada mês ela aparecia com uma cor nova nas borrachinhas do aparelho – este mês era roxa. Eu sempre fui louco por meninas com aparelhos.

Tocou o sinal e eu desci para o recreio meio cabisbaixo.
Carré, tá complicado pacas. Pô, a Clarinha não está nem aí pra mim!
- Fiquei sabendo que ela está de rolo com um cara do terceiro ano.
- Nem me fala isso Carré, tu quer me matar do coração?
- Preciso fazer alguma coisa para chamar a atenção dela, e tu vai me ajudar nessa!
- Tu vai me meter numa furada de novo Fred.
- Tu vai me deixar na roubada sozinho Carré?
- Da última vez que você bolou alguma coisa deu a maior cagada Fred, eu fiquei três dias em casa, e cinco sem jogar vídeo-game.
- Foi o idiota do Nareba, contou para mãe dele o lance da cantina, eu não tive culpa.
- Dessa vez somos eu e você, limpeza total.

Depois de quinze minutos consegui convencer o Carré a me ajudar, mas ele quase amarelou quando contei o meu plano.
- Fred, tá de sacanagem?!
- Nós vamos ser expulsos da escola!
- Carré, não vai amarelar, deixa de ser cagão!
- Amanhã, às duas horas tu me encontra na casa do Nareba.
- Você não disse que o Nareba estava fora dessa?
- A mãe do Nareba é professora, precisamos dele, mas dessa vez não tem erro.
- Vou ficar sem jogar vídeo-game o resto da minha vida, lamentou o menino.


Todas as nossas reuniões eram marcadas na casa do Nareba. A mãe dele fazia um lanche da melhor qualidade. De família mineira, não faltava comida naquela casa. Pão-de-queijo, cookies de chocolate e sorvete de flocos – meu preferido. Sem contar com o Milk-shake de Ovomaltine da Juju, a senhora que trabalhava na casa do Nareba. Cheguei lá duas horas em ponto: minha família era alemã e meu bisavô não deixa alguém se sentar à mesa estando atrasado para o almoço, por conta disso, até hoje sou psicótico com horários. Carré estava atrasado, como sempre.

Nareba estava lendo um gibi do Homem-Aranha quando cheguei, era viciado naquele negócio – coisa de nerd programador de computador. Enquanto esperávamos o Carré, fui logo adiantando o plano para ele.
- Não Fred, não me coloca em outra confusão, a última vez já deu o maior rolo. Minha mãe ficou uma fera comigo. Tu sabe que ela é coordenadora da escola.
- Pô Nareba, a última vez foi culpa do Carré.
- Dessa vez vai ser limpeza total.
           
          Quando terminei de explicar ao Nareba o que iríamos fazer, tocou o interfone, era o Carré. Maurício, o seu amigo Bernardo está subindo, gritou da cozinha a Juju. O Carré entrou no quarto na hora em que o Nareba falou:
                       - Fred, dessa vez a gente vai ser expulso da escola.
            - Falei a mesma coisa para ele Nareba.
            - Pô, Bernardo, olha a pilha errada! É só ninguém vacilar.
- Fred, o diretor vai ficar louco, e ele já tá de olho na gente. Não lembra, ele falou que na próxima era rua.
- Pô galera, é pela Clarinha, para chamar atenção dela, vocês vão me deixar na mão nessa?

            Foi mais difícil convencer os dois do que da última vez, mas eu consegui.
-Então tá combinado: Nareba, fala que precisa conversar com sua mãe e pega a chave do terraço no claviculário da secretaria.
- Carré, pede para o teu pai trazer cinco caixas de suco Tangue de uva. De uva! O pai do Carré era diretor dos supermercados Carrefour.
- Cinco caixas? Como vou pedir isso?
- Diz que é para o treino do futebol na sexta, pô, sei lá, inventa qualquer coisa.

Segunda de manhã, depois da primeira aula, corremos, eu e Carré, para a porta do terraço. Nareba chegou dez minutos depois.
- Abre a porta, rápido!
- Deu o maior trabalho conseguir a chave, minha mãe me olhou desconfiada, vai dar confusão!
- Foco Maurício, abre a porta.

            Subimos correndo, lá estava ela, azul, enorme, a caixa d´água.
- Carré, pega as caixas de Tangue.

Abrimos as cinco caixas de Tangue e jogamos tudo na caixa d´água da escola. Deu dor na mão de tanto rasgar pacotinho de suco. Acho que rasgamos uns quinhentos pacotinhos. Pegamos os saquinhos rasgados e socamos tudo na mochila do Carré. Depois disso, fechamos a tampa da caixa d´água e descemos correndo escada abaixo. Quando chegamos à porta da sala, a aula já havia começado, aula de física. Cada um entra de uma vez, senão vão dar na cara, eu disse. O Nareba entrou primeiro, depois o Carré e por último eu. Quando eu passei perto do tablado em que o professor ficava durante a aula, ouvi aquela voz estranha dizendo: você está atrasado jovenzinho! Virei, e aquela pinta estava me encarando. Pedi desculpas e sentei.

Eu estava tão nervoso que nem me dei conta de um detalhe: tinha sentado ao lado da Maria Clara. Olhei para o lado e dei de cara com ela. Ela sorriu para mim um sorriso qualquer, e voltamos para as explicações do professor. Eu ficava completamente desconcertado ao lado dela. O seu cheiro de tutti-frutti me embriagava. Como sua letra era caprichosa, acho que usava umas dez cores de canetas diferentes para copiar a matéria. Faltando uns quinze minutos para o fim da aula, enchi meu coração de coragem, e passei um bilhetinho para Clarinha: hoje a escola inteira vai ficar da cor da borrachinha do seu aparelho, você é linda! Ela me olhou sem entender absolutamente nada.

No fim da penúltima aula, já era possível ouvir as risadas. Suco de uva, suco de uva,gritavam os pequeninos da 2ª séria. No bebedouro jorrava suco de uva. Na pia do banheiro, jorrava suco de uva. Da torneira da cozinha jorrava suco de uva. A água da escola se tornara suco de uva.  Todos riam e especulavam como isso poderia ter acontecido. Meus colegas de classe saíram correndo da sala para ver o que estava acontecendo. Amontoaram-se perto do bebedouro. Outros apertavam a descarga do banheiro, tudo era suco de uva.

E lá estava Maria Clara, linda, rindo da brincadeira no meio das amigas. Eu fiquei de longe olhando. De repente, o inspetor passou e mandou que todos entrassem em sala e lá ficassem. Não foi fácil colocar toda aquela garotada em sala, depois daquela confusão. Uns vinte minutos depois, o diretor da escola entrou furioso, em seguida a mãe do Nareba, com cara de poucos amigos e... Putz! O Nareba! Não acredito! Olhei para o Carré, e ele mexendo os lábios de longe disse para mim: vai dar cagada. Não deu outra, o diretor olhou para o grupo de alunos, e chamou: Senhor Frederico Paixão e Senhor Bernardo Castro, por favor, venham comigo.

O Nareba esquecera de devolver a chave para o claviculário da secretaria e decidiu resolver a situação no meio daquela confusão. Resultado: foi surpreendido pela secretária, que o levou até a sala da mãe dele, e o fez confessar – de novo. Por fim, estávamos eu, Nareba e Carré na direção mais uma vez. O Carré louco comigo, o Nareba com a orelha vermelha, acho que a mãe dele deu-lhe um puxão. Os três sentados no banco do corredor da sala do diretor, esperando que o veredicto fosse proferido. Olhei para o Carré e ele disse,falei que ia dar cagada. Dei um tapa na cabeça do Nareba: Pô Nareba, que vacilo!
  
Quarenta minutos depois, ainda estávamos esperando. De repente, chega minha mãe e a mãe do Carré. Minha mãe passou me fulminando com o olhar, e a mãe do Carré disse: vou confiscar o vídeo-game para sempre. Naquele momento eu percebi que tinha passado dos limites. O diretor decidiu não nos expulsar graças à mãe do Nareba. Minha mãe prometeu mandar pagar a lavagem da caixa d´água, e falou que eu iria para uma psicóloga. A mãe do Carré prometeu que dividiria as custas da limpeza da caixa d´água, e suspenderia o vídeo-game do filho.
  
Resumo da ópera: ganhamos quinze dias de suspensão, mas o diretor voltou atrás porque era época do vestibular. Carré ficou um mês sem vídeo-games e o Nareba quatro fins-de-semana sem sair de casa. Minha mãe me deixou dois meses sem surfar. Mas eu não contei a melhor parte da história. Três dias depois, porque a escola precisou desse tempo para a limpeza da caixa d´água, eu estava vagando entre a ótica e a mecânica, durante a aula de física, quando Dani Peitão me passou um bilhetinho. Abri o papel, tinha cheiro de tutti-frutti. Lá estava escrito: você não precisava ter feito isso por mim, era só ter me convidado para tomar um sorvete, assinado Clara, e tinha um coração desenhado.

Meu coração começou a bater forte, olhei para os lados procurando Clarinha e desta vez foi fácil encontrar seu olhar e seu sorriso. Nada me atrapalhava, nem a pinta do professor Noronha. O mundo parou. Rapidamente eu escrevi: Hoje à tarde, depois da aula, na sorveteria Babuska de Ipanema? Fiz um quadrado ao lado de um “sim” e outro, abaixo, ao lado de um “não”, e passei o bilhete. Ela abriu o papel, respondeu, e mandou de volta. Estava marcado no “sim”. Foi naquela tarde que eu e Clarinha começamos a namorar, namoro de adolescente, cheio de coisas que me dão saudade. Foi daquele dia em diante também que o Nareba e o Carré ficaram livres dos meus planos desastrosos. Quer dizer, até o segundo ano da faculdade, quando eu me apaixonei pela Martinha – que também usava aparelho. (LARP)

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